Filmes 2012

Adaptação da primeira parte de uma trilogia literária escrita por Suzanne Collins, Jogos Vorazes, além de ser uma produção eficaz, tem tudo para engatilhar uma franquia de êxito qualitativo e popular, pois, previsto para se estender por mais três filmes, que serão baseados nos dois romances restantes, o universo apresentado pela película nas quase duas horas e meia de projeção é intrigante o bastante para preservar o interesse do espectador durante futuros capítulos. Estabelecendo bem seus temas, personagens, atmosfera e possibilidades, Jogos Vorazes, nessa primeira empreitada cinematográfica, não fica apenas na promessa, causando um impacto certeiro ao se revelar como uma espécie de cruzamento entre o sangrento exemplar de ação japonês Batalha Real e alguns dos principais elementos vistos em O Show de Truman. Pra falar a verdade, a comparação com este último vem somente a calhar no caso de determinar precedentes fílmicos para esta nova produção, já que o pano de fundo aqui, tal qual o daquele longa, encontra respaldo direto em nossa própria realidade cultural, de maneira extrema, sim, mas não menos verdadeira em sua essência.

Numa nação desnaturada, mas enganosamente unida por um governo repugnante, doze distritos, anualmente, preparam - ou não - seus jovens habitantes de doze a dezoito anos de idade para que disputem o torneio que dá título ao filme - uma competição televisionada de exacerbado apelo nacional que, assim como os reality shows competitivos de nossa cultura (ocidental, oriental, enfim, mundial), é um nítido meio de alienação do povo e forte produto capitalista (detalhe: não dá pra saber exatamente como se dá a comercialização do jogo, mas imagino que as tevês e seus pomposos apresentadores lucrem absurdos com isso). No entanto, em Jogos Vorazes, a alienação, para a maioria, consiste num exercício compreensível (senão imposto pelas autoridades) de acompanhar o que muito provavelmente será os últimos momentos de jovens familiares sorteados para uma inevitável desventura. Esta é a realidade dos distritos mais pobres, que, ocupados sobretudo com a sobrevivência diária, na busca por comida e demais condições básicas de vida, não detêm do tempo e dos meios para treinar jovens a fim de que estes se voluntariem para o tradicional jogo e assim impeçam os despreparados de serem praticamente condenados à morte pela aleatoriedade de um sorteio.

Foi se voluntariando para o torneio que a protagonista Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) impediu que sua irmã mais nova (com quem possui uma relação muito maternal, semelhante ao papel de Lawrence em Inverno da Alma), a original escolhida, fosse a representante feminina do Distrito 12 nos Jogos Vorazes. Habilidosa com o arco e flecha e conhecedora da caça, Katniss é uma das poucas, em muitos anos, que representa alguma esperança de vitória para o Distrito 12 na competição em questão, como bem observa seu parceiro, Peeta Mellark (Josh Hutcherson), quando menciona a esta um comentário de sua mãe, que obviamente não se referia à capacidade do garoto ao dizer que o distrito finalmente teria alguma chance de vencer os jogos. Entretanto, não é preciso muito para constatar que as pessoas dos distritos de números maiores (e mais pobres) não almejam a vitória nos Jogos Vorazes apenas como ato de influência e regalia para suas províncias, mas sim como um ato de efêmero alívio em substituição de uma eventualidade triste que a cada ano se desfaz de duas jovens vidas - uma tragédia que, acima de tudo, existe apenas para lembrar aquelas pessoas de que o governo manda, o governo detém o poder e o governo não tolerará mais nenhum tipo de rebelião.

Concebendo o Distrito 12 (e as demais províncias pobres) como uma localidade desamparada, de pessoas tristes em roupas humildes e anacrônicas, com um aspecto de vila, e cujos indivíduos se movem unicamente em torno do trabalho, a direção de arte de Jogos Vorazes firma no início um realismo eficiente que, a princípio, não aponta aquela realidade como futurista nem excêntrica - até que uma figura ridiculamente rosada, carregada de maquiagem, usando um vestido vitoriano e segurando uma sombrinha surge para anunciar o que todos ali antecipam com temor. Seu nome é Effie Trinket (Elizabeth Banks, irreconhecível), enviada diretamente da Capital (o local sede dos jogos e lar das autoridades) para executar a “celebração” do chamado Dia da Colheita e escoltar, dali em diante, o casal de competidores do Distrito 12 por entre as diversas etapas que estes irão percorrer assim que embarcarem para os jogos. E é só a narrativa adentrar a Capital que o contraste vem, em forma de uma realidade futurista e extravagante cuja superficialidade é patente. Se os trajes simples do povo distrital denotavam sua pobreza, por outro lado ajudavam a enxergarmos aqueles indivíduos como seres dotados de humanidade, sentimentos, valores e afeto (algo também realçado pela intimidade com que o diretor Gary Ross concebe algumas cenas passadas no lugar). Diferentemente, a grandiloquência tecnológica e arquitetural da Capital é cenário para um desfile de figuras “kitschizadas”, quase surrealistas, cujas expressões estéticas excessivamente colorizadas e estapafúrdias denunciam o oco daquela sociedade, que celebra ávida a passagem dos jogos pela cidade, e consome em deleite a crueldade de seu governo em forma de atração televisiva.

O roteiro escrito pelo diretor Gary Ross juntamente com Billy Ray e a própria autora do livro que inspirada o filme é feliz ao desenvolver a trama por etapas, nos apresentando à mitologia e às características do universo desta história e também nos dando a oportunidade de conhecer bem alguns personagens secundários - algo importante, já que, ao cravar algumas figuras com firmeza, o longa já tem material sólido para ser trabalhado futuramente. Além da já mencionada Effie, temos o beberrão Haymitch (como de praxe, divertidamente interpretado por Woody Harrelson), o mentor de Katniss e Peeta; o estilista Cinna (o músico Lenny Kravitz), responsável por cuidar da aparência do casal; além do gozado entrevistador e apresentador televisivo Caesar (Stanley Tucci) e o cabeça por trás da atual edição dos jogos Seneca (Wes Bentley). Por último, o Presidente Snow é carregado de uma intimidade natural provinda de seu interprete Donald Sutherland, embora seja curioso o fato do personagem exibir uma aparência estética muito mais sóbria e regulada do que o costumeiro na Capital - o que só deixa-o mais intrigante, já que, apesar do alto grau de autoridade e claros indicativos vilanescos, parece ser uma das figuras mais humanas daquele meio.

Além do mais, a narrativa de Jogos Vorazes também se beneficia do avanço metódico para explorar as políticas que acompanham a fase pré-jogo dos competidores. Assim, nos é mostrado o tratado de celebridade dado a Katniss e Peeta (e a todos os outros tributos, claro), que através de desfiles e aparições na televisão, têm de causar uma boa impressão e conquistar os patrocinadores (que podem enviar itens úteis aos competidores durante o jogo), de modo a aumentarem suas chances de sobrevivência no torneio - o que os força a abandonar qualquer resquício de resistência filosófica e mergulhar com tudo na futilidade e no jogo de impressões demandado pelo processo. Também acompanhamos os treinos dos tributos, que nos apresenta aos adversários mais perigosos do jogo, e o teste de habilidades pelo qual estes passam, até que finalmente começam a competição.

E é de se esperar que, como um filme de drama que também se auto-proclama um exemplar do gênero ação, Jogos Vorazes transforme sua segunda metade no completo oposto da primeira, mas a positiva surpresa é que não é exatamente isso o que ocorre. Longe de aspirar a explicitude gráfica de seu semelhante Batalha Real, o filme de Gary Ross opta, uma vez em campo, ou melhor, na selva, onde de fato se passa os Jogos Vorazes, por duelos estratégicos ao invés do embate corporal e sangrento - e ao mesmo tempo em que a cena do cacho de vespas é um exemplo disso, também acaba não devendo nada à violência visceral do longa japonês, sendo tanto angustiante acompanhar a tentativa de Katniss em abater seus adversários à espreita de que ela desça da árvore (ao cortar o galho que abriga o cacho), quanto aflitivo presenciar o destino de alguns deles. Além disso, a constituição temporal do longa continua paciente mesmo durante o jogo; não há pressa para que a competição se desenrole, mesmo que a quantidade de matança pareça se dar num ritmo acelerado (o que, infelizmente, acaba soando indigesto no final do terceiro ato, quando, sem ideia para terminarem o jogo de forma orgânica, os roteiristas introduzem o tolo conceito dos cães monstruosos concebidos em computador, que surgem apenas pra solucionar logo a trama e problematizar algumas questões fundamentais da história). Enquanto isso, o diretor constrói tensão de maneira eficaz ao aproveitar-se do tempo, como quando apenas acompanha os momentos de Katniss em cima de árvores.

Lançando mão de uma câmera constantemente trêmula, Gary Ross emprega em Jogos Vorazes uma estética nada atípica para o gênero de ação, com a diferença de que, tornando-se verdadeiramente um filme de ação apenas em sua segunda hora, e ainda assim substituindo sequências de agitação desenfreada por passagens mais contemplativas e estratégicas durante sua segunda metade, o estilo do diretor está mais interessado em registrar a inquietude emocional do que a física, e isso fica evidente logo nos primeiros momentos do filme, quando acompanhamos a apreensão dos jovens a poucos minutos da Colheita através de enquadramentos nervosos e uma montagem entrecortada que também se faz presente durante o restante do longa. E é brilhante que, procurando livrar a violência bruta da banalidade, o diretor conceba a matança que se dá logo no início do jogo de uma forma totalmente inesperada e com clímax, suspendendo o som ambiente e empregando uma trilha instrumental (excelente durante todo o tempo) que parece representar o som do nervosismo, da desordem, dando origem a uma sequência extremamente tensa e angustiante em que os personagens correm para uma mesma direção em busca de itens e, no caminho, já começam a se atacar impiedosamente. Semelhante manejo sensorial pode também ser observado no momento em que Katniss faz sua entrada num programa de tevê e se surpreende com a magnitude da platéia, passando a escutar (assim como nós) os sons emitidos por esta de forma abafada; além do momento em que uma personagem morre nos braços da outra e, transformando uma cena que poderia soar clichê, acompanhamos, por meio de uma câmera subjetiva, o ponto de vista da personagem morrendo; bem como quando Katniss sofre das alucinações provindas das picadas das vespas. E mesmo que a montagem entrecortada deslize em um momento pontual no final, quando três personagens brigam no escuro em uma superfície escura, tornando a cena incompreensível até o plano se abrir, Jogos Vorazes apresenta componentes visuais mais do que satisfatórios e relativamente surpreendentes dada a maneira como o filme opera.

Fortificado por uma atuação firme e emocional de Jennifer Lawrence, criando uma personagem sensata e ao mesmo tempo ousada - que torna o gesto simultaneamente provocativo e compassivo de florear a sepultura da representante de um distrito pobre um convincente motivo para incitar uma rebelião - , Jogos Vorazes consegue até mesmo criar um pano de fundo romântico (com potencial para lançar um triangulo amoroso ou até quadrado amoroso, pelo que observei) de forma convincente, graças ao contexto em que este é inserido, já que, oblíqua, a relação amorosa dos personagens ora parece ser apenas uma tática para conquistar a simpatia dos patrocinadores e do público, ora um ato de desespero de dois jovens que não sabem ao certo se sairão vivos daquela experiência - além de que a astúcia da personagem de Katniss nos momentos finais do jogo não só remete à “Romeu & Julieta”, para dar ainda mais significado romântico à história, como também expõe o momento mais constrangedor de pateticismo humano do filme, sem contar que é a atitude de Katniss o principal motivador do que está por vir nesta que já é praticamente uma cinessérie de sucesso popular, mas que, a julgar por este ótimo começo, tem tudo pra ser um êxito em todos os demais aspectos.