Explore
 Lists  Reviews  Images  Update feed
Categories
MoviesTV ShowsMusicBooksGamesDVDs/Blu-RayPeopleArt & DesignPlacesWeb TV & PodcastsToys & CollectiblesComic Book SeriesBeautyAnimals   View more categories »
Listal logo
69 Views
1
vote

a trágica beleza da ignorância

Flores para Algernon é ao lado de Frankenstein de Mary Shelley um dos livros mais comoventes e interessantes que já li, abordando vários temas como abandono, doenças mentais, psicanálise, religião, conhecimento, ignorância, amnésia e uma ampla gama de temas que são desenvolvidos nas mais de 200 páginas do romance. Contextualizando primeiro, o autor é um dos pais dos cartoons na América, sendo grande amigo do Stan Lee e consequentemente um dos fundadores da Marvel. O livro em si foi publicado na década de 50 para 60 e se trata de uma espécie de diário que é escrita por um deficiente mental chamado Charlie Gordon que foi abandonado pelos pais e cooptado por um grupo de cientistas como cobaia de um experimento onde ele poderia deixar sua condição cognitiva e aumentar seu qi através de uma cirurgia, sendo este o elemento de ficção científica do livro. Charlie então realiza a cirurgia e deixa de ser retardado e se torna literalmente um gênio, uma vez que sua inteligência é despertada ele passa a ver o mundo com outros olhos percebendo coisas que antes não era capaz de notar.

Charlie é um personagem sumamente complexo em todo o sentido, seu arco como deficiente mental é bastante comovedor sendo ele vítima de muitas injustiças e zombarias pelo fato de ser inocente, em muitas instâncias seu personagem me recorda Myshkin do romance O Idiota, sendo ele alguém inocente e puro incapaz de notar a maldade das outras pessoas em relação a ele. Seus médicos por outro lado o tratam como um rato de laboratório, sendo Algernon, o seu espelho como personagem. Essa primeira parte do livro é propositalmente escrita com vários erros de pontuação e de gramática pela razão de que Gordon é bastante limitado intelectualmente. Tudo isso muda com sua cirurgia, que lhe concede o extraordinário qi de 180 passando de um retardado para um literal gênio, conhecendo a si mesmo e se dando conta do mundo ao seu redor melhorando gradualmente sua grafia, é uma mudança tão natural que é possível sentir em certas partes do livro.

Gordon então descobre sua sexualidade aos 32 anos, se apaixonando pela médica que cuidava dele, contudo ela não demonstra os mesmos sentimentos por ele, o que deixa ele profundamente triste e fazendo ele se renegar aos estudos, com sua incrível capacidade cognitiva ele é capaz de inclusive ajudar seus médicos com os relatórios e com o próprio diagnóstico, aprendendo vários idiomas se distanciando da religião e convertendo em um antissocial cínico distanciando várias pessoas dele, com ele finalmente entendo que as pessoas se aproximavam dele apenas porque queriam parecer mais inteligentes afinal "perto de um idiota é muito fácil bancar o inteligente" é então que ele entra em uma espécie de crise existencial onde a sua inteligência termina afastando as pessoas, com ele sentindo um vazio tremendo que acaba em uma espiral de deterioração emocional que chega em um nível bastante psicológico e até existencial com Gordon indagando que "a busca incessante pela inteligência isola a busca por sentimentos humanos" e que há uma certa beleza na ignorância, não que o autor menospreze o conhecimento mas sim ressalta que a busca pelo entendimento não pode se sobrepor a busca pelos sentimentos humanos e pelo amor ao próximo, com o protagonista traçando um paralelismo com a história de Adão e Eva quando ambos não tinham o conhecimento de que estavam nus e que o conhecimento dado pelo fruto proibido foi a raiz das tristezas humanas.

"O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza"

Gordon então seria uma espécie de arquétipo de Adão, que ao se ver em um estado de ignorância se encontra feliz na ignorância e quando prova do fruto proibido ele passa a ter uma percepção avançadíssima da realidade e com isso levando-o a desenvolver um profundo vazio e carência emocional pois todos ao seu redor o desprezam por sua arrogância e cinismo. O livro também aborda temas sobre a psicanálise com Gordon se recordando de como foi sua infância, com sua mãe desmiolada e hipócrita o tratando como uma anomalia e negligenciando o amor ao seu filho, sendo rejeitado inclusive por seu pai, essa é talvez a parte mais pesada do livro, Gordon recobra suas memórias lembrando de todo o bullying e sofrimento que passou baixo a proteção dos seus pais. Emocionalmente quebrado Gordon se envolve com uma mulher promíscua que vê nele apenas como algo de diversão sem muita complexidade demonstrando até mesmo um certo desprezo pelo seu trabalho. O final dos seus pais é irônico já que do mesmo modo que sua mãe abandona Gordon, ela é abandonada pelo marido vivendo as custas da filha se tornando inválida devido aos problemas emocionais. Essa parte do livro em específico é uma das mais comoventes de todo o romance.

O livro então tem o desfecho com a morte do ratinho Algernon, quando Gordon percebe que seu cérebro está atrofiando e suas memórias estão indo embora devido as falhas da cirurgia, é aqui que o livro aborda o tema da amnésia, Gordon começa a se esquecer dos seus estudos, dos seus horários e até dos seus entes queridos até que o livro termina com sua última nota que por coincidência tem de ver com não se esquecer de Levar flores para o túlmulo de Algernon, que é um paralelismo para que Gordon não seja esquecido já que Algernon é o seu espelho e do mesmo modo que o ratinho morreu com o cérebro atrofiando, ele também se foi desse modo encerrando o livro. Gordon se vê em Algernon, vivendo em uma gaiola sendo visto como uma cobaia em vez de um indivíduo, manifestando a vontade de Charlie por uma construção de uma identidade sólida.

Minhas impressões sobre o livro são sumamente positivas, a começar pelo estilo narrativo que conta com uma exploração psicológica que chega ao terreno do existencialismo e da psicanálise, com Gordon sofrendo o dilema da inteligência e da solidão de não ser amado por ninguém, enquanto que em seu estado de deficiente ele era "querido" pelas pessoas, tendo amigos e etc devido ao seu jeito simples e funcional de ser. O livro inteiro é sobre a vida de Gordon e sua tragédia em busca de ser aceito pelas pessoas, seja pela sua ignorância ou inteligência, é um personagem sumamente complexo e cheio de dilemas, poucas vezes vi personagens assim e posso dizer que rivaliza com coisas como Evangelion pela profundidade em que é explorado o protagonista. Apesar de que Gordon é afligido por muitas desgraças não é como se todos o tratassem mau ou fossem sádicos com ele, sua doutora ou alguns personagens como o dono da loja demonstram por várias vezes empatia genuína pela sua condição.

De modo que seria Flowers for Algernon uma obra prima da literatura? Quase, tirando Gordon, os outros personagens não são tão complexos como ele, apesar de que não são para nada medíocres e terminam servindo, em especial os médicos de Gordon como criticismo sobre como essa mentalidade de buscar de forma incessante pelo conhecimento científico pode isolar de buscar por sentimentos humanos, trazendo questões sobre os limites da ciência e sobre ética. O livro também é uma denúncia sobre a condição deplorável em que viviam os retardados mentais na época, com Charlie e muitos outros vivendo marginalizados, esquecidos e abandonados, humilhados e vistos como criaturas disformes sendo constantemente sendo usados de maneira mesquinha como se de algum freak show se tratasse, é um tipo de história com a qual tenho uma certa predileção. Pode facilmente entrar em uma lista de livros favoritos da vida e que é bastante difícil de achar defeitos, posso mencionar que a história de Gordon terminou sem uma conclusão suficientemente satisfatória e ainda sim reconheço que não é um final medíocre de modo que termino dessa forma;

escrita:8/10(poética em ocasiões e simplória em outras)
personagens:10/10(Gordon em específico)
temas:10/10(serei direto em dizer que é um dos livros mais belos sobre o tema)
importância:9/10(o melhor romance sobre doenças mentais desde a obra de Dostoiévski)
nota final:9,5/10
Avatar
Added by Magnifik
1 year ago on 7 August 2022 07:31

Votes for this - View all
amongus