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The Idiot review
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Vale a pena ser bom?

O Idiota de Fyodor Dostoiévski faz parte dos seus romances pós Sibéria, para contextualizar rapidamente, ele foi preso por participar de grupos anti-czar e quase foi condenado à morte, quando saiu da prisão escreveu Crime e Castigo, Os Demônios, Irmãos Karamazov e O idiota, obras essas que criticam duramente as visões seculares e niilistas que haviam se impregnado na Rússia e que posteriormente causaria revoluções e divisões onde se cometeram várias atrocidades. A visão de Dostoiévski sobre o mundo é baseada no cristianismo e nos mandamentos bíblicos mesclados com um certo apelo ao social, algo parecido com a doutrina social da igreja católica expressa na carta da Rerum Novarum, apesar do mesmo detestar a igreja católica, coisa que ele expressa nessa mesma obra. Sobre a história, é um livro que se passa em São Petersburgo e narra a história do Príncipe Liev Nikolaevich Míshkin, que decide visitar sua família na cidade para conseguir um emprego, com a intenção também de conhecer sua família mais afastada. Em Petersburgo ele conhece seus parentes sendo eles; Lizavieta Prokofievna Epantchin e suas filhas Adelaída, Aglaia e Aleksandra, fora a principal Nastássia Filipovna.

O príncipe Míshkin tenta conseguir um emprego na casa dos Epantchin com fim de se estabelecer, no entanto termina se envolvendo em um relacionamento com Nastássia Filipovna devido ao caráter mágico dele. No percurso Míshkin também conhece Parfion Rogojin, sendo este seu antagonista, opositor em toda a regra sendo um mega vilão(nota:tipo de vilão que é o oposto absoluto do protagonista ex:venom). Míshkin ao princípio é menosprezado e tratado como um estúpido por todos ao seu redor pela sua índole de ser bom para com todos, isso dura até descobrirem que ele possui uma fortuna que um falecido tio seu lhe deixou, todos então passam a trata-lo bem e Nastássia Filipovna propõe casar-se com ele rejeitando Rogojin que era seu pretendente. Rogojin é humilhado por Nastássia e desenvolve um ódio que culmina no ato final do livro, do qual não darei spoilers. É interessante lembrar que esse livro foi escrito em um período bastante negro na vida de Dostoiévski, estava fragilizado emocionalmente e fisicamente, seus ataques de epilepsia se tornaram frequentes, sua filha mais nova havia morrido prematuramente e estava endividado devido as jogatinas, fora que estava sob forte pressão dos editores para entregar o romance. De modo similar ao autor de Neon Gênesis Evangelion que sofria de depressão e estava endividado e de forma inspiracional transformaram seus problemas em arte e o resultado foi algo sumamente profundo e psicológico, é o caso de vários autores e escritores ao redor do mundo.

Acredito eu que os problemas quando se tornam muito grandes, ficam claros e impossíveis de ignorar, fazendo o sujeito cair em uma profunda reflexão e solidão que culmina nos questionamentos mais profundos existentes, ele passa a refletir sobre sua vida e sobre questões mais elevadas como o futuro da sociedade ou a imortalidade de nossas almas. Talvez seja o caso de Dostoiévski já que muitos dos seus personagens são inspirados nele próprio, personagens como Smerdiakov ou Raskolnikov, o que nos leva ao personagem de Míshkin, que diferente de outros personagens dele, que em sua maioria eram canalhas, depressivos, psicóticos ou criminosos, Míshkin por outro lado é um ser manso e humilde, levando consigo a representação máxima do cristianismo, alguém que não julga, que ajuda e que é compreensível com todos, tratando de ver o melhor em cada pessoa. Míshkin é em poucas palavras "O príncipe de Cristo" um personagem bom de caráter. O primeiro problema que pensei ter em relação a esse personagem quando li sobre a premissa é "será um personagem irritante e chato que cuspirá lição de moral a cada minuto" por sorte não é o caso e Dostoiévski usou de engenhosidade para criar um personagem simpático, bom e ao mesmo tempo trágico.

Dostoiévski quis criar um personagem genuinamente bom, um contraste com a mentalidade niilista de que não existe moral, todavia seria um livro chatíssimo se fosse apenas sobre um personagem bom o tempo inteiro, fazendo vários amigos e vivendo de forma feliz sem problemas certo? É óbvio que se tratando de Dostoiévski não seria apenas isso e evidentemente ele usaria essa premissa para explorar temas existenciais e teológicos de grande relevância para os que tem dúvidas sobre a fé. Míshkin como referi antes, é um personagem trágico, trágico porque o ambiente ao seu redor está tomado por gente mesquinha, niilista e materialista da pior espécie, com os quais o autor busca fazer críticas em relação a sociedade russa e sobre como estavam perdidos em frivolidades "amantes de si mesmos" como o próprio autor diz. Em termos de caracterização Míshkin é um personagem bem redondo, não é o personagem mais complexo do autor mas é um dos mais interessantes sem dúvidas já que ao mesmo tempo que é bom, humilde e manso, também pode ser cínico, meio covarde, tímido e instável em raras ocasiões, este último é em consequência do ambiente radioativo em que ele se encontra, onde todos tentam lhe tirar vantagens e o tratam como imbecil.

O tratam como imbecil por sua natureza boa, já que quase todos são materialistas, todavia quando estão próximos dele, evidenciam o próprio caráter, a interpretação que tiro disso é que Míshkin representa a luz de Cristo, ele é a encarnação do ideal cristão que lança luz sobre as trevas e revela os demônios e as imperfeições humanas. Míshkin carece de sexualidade não por ser homossexual mas por ser casto e tendencioso a ver apenas o lado bom e inocente das pessoas, por mais que ele mesmo saiba que em geral está lidando com cretinos, coisa que ele está consciente e ainda sim procura meio que desesperadamente as boas características nas pessoas. Seu dilema é profundamente existencial já que ao mesmo tempo que tenta ser bom com todos, todos tentam tirar-lhe proveito, seu caráter atrai todo tipo de gente com más intenções porque sabem que ele não fará nada. É quando o autor nos coloca de forma meditativa o questionamento de "é possível ser bom com todos?" "perdoar os maus nos faz cúmplices?" "a pena de morte é cristã?" não há respostas dentro do livro, são reflexões que o próprio leitor pode tirar. A tragédia de Míshkin possui tons existenciais que merecem uma profunda reflexão, a primeira reflexão é sobre o que levou a família dos Epantchin a esse estado de decadência moral? De onde vem essa cobiça por bens materiais e idolatria do próprio ego?

É uma forma lírica do autor ressaltar a importância de Deus e de como essa mentalidade de "apenas eu e meus desejos importam" é ruim já que leva a uma alienação do mundo, a frieza no coração e a dissolução dos vínculos familiares que podem degenerar em coisas piores, essa questão é amplamente desenvolvida em "Irmãos Karamazov" por aqui temos um esboço de um tema importantíssimo. Saindo de Míshkin e falando finalmente dos outros personagens, temos Nastássia Filipovna que é talvez a personagem mais complexa do romance, se trata de uma burguesa de família "nobre"  que desde cedo era culta e bem desenvolvida, sendo descrita como a encarnação da beleza, arrastava homens e despertava a admiração de todos por sua beleza e inteligência, sua beleza desperta o interesse de Rogojin e Míshkin que "disputam" seu "amor". A tragédia de seu personagem consiste em que ela desde cedo era adorada e despertava o interesse de vários homens, e era ciente de que todos que se aproximavam dela eram ou interesseiros ou apenas aventureiros seduzidos por sua peculiar beleza, ao conhecer Míshkin ela se deparou com um homem que genuinamente gostava dela não pela sua beleza ou dinheiro mas por quem ela era de fato, Míshkin a tratava bem e não julgava seus ataques de histeria nem sua personalidade problemática.

Devido a maturidade prematura e os mimos da nobreza, Nastássia Filipovna cresce em um ambiente vazio e carente de valores em plena ascensão do feminismo, tornando ela uma pessoa narcisista e com complexos de grandeza onde ela se vê como um ser superior que merece uma vida superior com alguém superior, de modo que sua personalidade é extremamente volátil e suas emoções e ações são difíceis de calcular de forma equacionar a causa e efeito, sendo ela intensa e bastante diferente de Míshkin que carece de sensualidade, coisa que não inspira Nastássia, terminando com o relacionamento entre os dois com a desculpa de que "não pode casar-se com um homem tão inocente e puro". Por outro lado temos Rogojin que é o extremo oposto de Míshkin, sensualista, mesquinho, niilista e com tendências assassinas, ele está totalmente apaixonado por Nastassia ao ponto de roubar para dar a ela brincos raros e até usar o dinheiro de seu pai para convencer os diretores de Nastássia a permitirem o noivado, ele se utiliza da personalidade gentil do príncipe para tirar vantagem e revela por vezes um instinto assassino que dura boa parte do livro até a consumação do ato.

O restante dos personagens são interessantes mas não possuem um grande impacto na história de modo que são relevantes a nível conceitual. Temos o patriarca Epantchin que é um coronel dono de pensões, um dos primeiros personagens que Míshkin conhece, temos Lizaveta Prokofievna e suas filhas que não possuem tanta relevância e que estão aí para ressaltar a falta de valores elevados na família, temos também o general Ivolguin, Ardaliónitch, Ivolguina e etc. São interessantes mas estão apenas para complementar os personagens principais. Finalizando com a resenha temos também os diálogos dos personagens sobre temas variados, Dostoiévski constantemente usa seus personagens para comentar assuntos e abordar temas importantes sobre a política, filosofia e estado das coisas, no caso dessa obra como em várias outras de sua autoria, fala-se acerca de como o niilismo está tomando conta da Rússia e de como os russos estavam exportando os "valores" europeus como se fosse a verdade absoluta e por consequência estariam traindo os valores russos, que o liberalismo nada mais era que a raiva contra a própria nação, indagações que considero corretas em vários níveis.

Nesse romance Dostoiévski também critica de forma incisiva a igreja católica dizendo que esta representa o ideal iluminista que por sua vez seria o próprio império do anticristo e que a igreja teria culpa em parte do niilismo que tomou conta da Europa no século 19, como católico essa crítica é bastante desagradável e até injusta por parte do autor, é verdade que a igreja católica atualmente é submissa aos governos ateus e que foi quase totalmente consumida pelos ideais do globalismo ao ponto de negar a própria tradição e sua grandiosidade histórica, ainda sim vejo como injusta a crítica de Dostoiévski já que desconsidera a árdua luta da igreja contra os ideais niilistas, expressos em vários documentos, é compreensível que ele tenha uma tendência forte à igreja ortodoxa, mas não acho justo esse tipo de criticismo pela própria história da igreja, porque se formos comparar as duas, a igreja ortodoxa deixou a Rússia ser tomada pelos bolcheviques terroristas enquanto que o Ocidente tentou retornar às raízes através da terceira posição, falhou e os estragos são sentidos até hoje. De resto concordo com a moral da obra de "não se deixar ser consumido pelo meio" é uma discussão válida e ao mesmo tempo perigosa já que é possível cair em argumentos russeaunianos de que o meio corrompe o indivíduo. Compactuo também com a ideia de que estamos caminhando para um niilismo destrutivo e um niilismo moral, o primeiro é representado nas barbáries cometidas pelos comunistas no século 20 e que está presente de forma escatológica no livro "Os Demônios" do mesmo autor aqui citado.

O segundo é representado pela carência religiosa e excessivo racionalismo que culminou nessa cultura atual de que a tecnologia e a ciência salvariam os seres humanos, como estamos vendo é todo o contrário, estamos mais imbecis que nunca, amantes de nossos egos, cada vez mais isolados das pessoas, com menos contato humano e vivendo sob a ameaça das ações maléficas de uma ciência que se vende como a salvação da raça humana ao mesmo tempo que produz armas biológicas, bombas atômicas, tecnologias extremamente questionáveis e escapismos cínicos que os desavisados imbecis se maravilham. Essa crítica é direcionada para todo mundo incluindo este que vos escreve, por vezes caí em ideias niilistas, ateias e em hedonismos baratos que me levaram a um estado de depressão e vazio existencial que culminou em ideias egoístas e cretinas, coisa que estou tentando mudar por hora através da oração. A conclusão de Dostoiévski sobre a religião cristã também considero certa em vários aspectos, quando ele diz que não há como racionalizar a religião e que apenas pela devoção e entrega da fé é que se pode superar o niilismo, é algo certo e a única forma existente de combater os senhores do mundo e os demônios que infestaram a Terra.

Tirando essas reflexões, o quão bom é esse livro? Bién, não é o melhor livro de Dostoiévski por várias razões, uma delas é por ser excessivamente longo, é um livro que conta com quase 700 páginas, onde pouca coisa ocorre realmente, é detalhista mas não aborrece com ninharias e mais da metade do livro é concentrado em aspectos mundanos que são usados para desenvolver os personagens, está ok mas não é necessário 700 páginas disso, não é como se houvesse um gigantesco estudo de personagem ou monólogos complexos que detalham a mente dos personagens como em Irmãos Karamazov, pelo contrário, o ponto do livro é mais concentrado nas ações dos personagens, uma forma mais complicada de escrever, usando de monólogos é mais fácil exprimir a mente do personagem, aqui existem ações concretas, ações das quais o leitor por intuição tenta captar a ontologia da obra. Outro problema com esse livro são os diálogos políticos, geralmente ocorrem do nada sem uma construção prévia fazendo com que pareça desconectado da história, o que não é o caso, os diálogos de política e filosofia estão intimamente conectadas com a obra mas devido a carência de sutileza termina dando essa impressão de algo está fora de lugar. Talvez a maior crítica que posso fazer a este livro é que ele é demasiado monótono em um ponto que foi desagradável ler algumas partes pelo excesso de falatório, o falatório esticado e arrastado está apenas para fazer o livro maior do que ele deveria ser.

Essa crítica sobre ser monótono é algo que pode afastar muita gente, porque diferente de outras obras de Dostoiévski, onde sempre está ocorrendo algo, seja um assassinato, uma investigação policial ou algum monólogo mind blowing que te prende até o final aqui encontramos uma espécie de slice of life filosófico. O início do livro é bem envolvente e tocante, em especial para os mais sensíveis e espirituosos, todavia a metade e o fim do livro possuem um toque novelístico bem abaixo para os padrões de escrita do Dostoiévski, coisa que ele corrigiu em Irmãos Karamazov, onde o drama funciona porque os personagens movem a trama, os diálogos e monólogos estão bem estruturados e justificados. Quer dizer que é um livro ruim? No, seus temas são altamente reflexivos, os diálogos apesar de extensos e aparentarem desconexão são interessantes para entender o contexto histórico bem como a visão do autor sobre os assuntos, não há nenhuma perda com o Personagem de Míshkin, Nastássia e Rogojin, são personagens bem construídos e a obra está carregada dos bons valores cristãos, o que me agrada nesse tipo de obra é que não há apenas sermões mas sim demonstrações, o livro não está cuspindo no leitor frases de efeito e receitas de conduta, está mostrando através de personagens bem construídos e humanos a forma da qual não devemos agir, é mais verossímil e capta muito mais pessoas que apenas dizer "hur o ateísmo é coisa do diabo" sabemos que é mas é mais interessante e agradável ver o porque de ser assim e as consequências, ainda mais que considero bastante a situação em que se encontrava o autor, é definitivamente um trabalho admirável e artisticamente belo, dotado dos melhores valores.


Escrita:7/10(excesso de detalhes em algumas partes)

personagens:8/10(os principais estão bem escritos)

temas:9/10(excelentes reflexões)

trama:7/10(zzzz em alguns momentos)

nota somada:8/10

nota final:8/10

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Added by Magnifik
1 year ago on 11 May 2022 05:02